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quarta-feira, 17 de junho de 2020




A Casa...

 

Quando criança, sempre era levado por meus pais a velha casa dos meus avós maternos, sítio Adequê – Jucurutu, RN. Comunidade simples, algumas casas espalhadas pelo torrão árido, onde podíamos contemplar em toda extremidade da estrada: galinhas, cabras, vacas e outros animais de pequeno e médio porte.

Era sempre maravilhoso visitar meus avós: José Alves Fernandes e Deocleciana Vieira de Melo, um homem multirracial casado com uma mulher branca. Além dos traços físicos e marcas genéticas nas feições dos dois, formavam um casal unido e dispostos a construírem uma família longe de opiniões ou sentimento em relação a algo já preconcebido como desfavorável ou negativo – o racismo.

A casa no sítio tinha uma grande varanda e era muito cheia de alegria. Um pequeno quarto ao lado da casa, servia como uma espécie de armazém/comércio, para estoque e comercialização de produtos utilitários nas tarefas diárias da família (despesa e custeio), como para venda aos transeuntes que procuravam suprir seus desejos já que a cidade ficava há alguns quilômetros da zona rural, onde estavam.

Lembro-me do cheiro da casa como se fosse hoje, dos mimos que meu avô fazia questão de nos fazer, nos enchia de guloseimas: pirulitos, pipocas e confeitos. Era impossível rejeitar tanto amor disfarçado de açúcar.

Ao longe, ouvíamos a voz forte de minha avó Deocleciana impor sua autoridade a uma de nossas primas – Maria, à quem ela havia assumido a responsabilidade de criá-la e por ser muito “elétrica”, corria sem parar da velha casa onde estávamos à residência de uma de nossas tias também chamada de Maria! Aliás,  Maria é um nome muito utilizado nas comunidades rurais e assume uma devoção por quem em muitos momentos da vida, longe dos centros urbanos e sem atendimento à saúde, só podia apelar em tempos difíceis, como era a hora em que muitas mulheres precisavam dá a luz bebês, recorriam exclusivamente a mãe da humanidade – a virgem Maria.

A vida na zona rural há trinta anos atrás era bem difícil, sem eletricidade, gás e ou outros luxos que dispomos com facilidade nos dias atuais. Porém, o sítio dos meus avós era um lugar que tinha o açude por trás da casa, os caminhos em zigue-zague que mais pareciam formarem labirintos a serem desbravados e o olhar atento do velho pastor de cabras que sentado na calçada do grupo escolar, ao longe, a tudo contemplava.

A noite, as conversas debaixo do céu escuro, as lamparinas a queimarem seus pavios de algodão embebidos no querosene, pareciam marcar como relógios bem acertados o momento de inicio e fim das estórias, causos, verdades de um tempo marcado pela experiência dos mais velhos. Histórias de vida expostas pela oralidade e marcadas em nossas mentes como lições de quem detinha a maturidade dos anos, a força do trabalho e a preocupação com o futuro da humanidade.

Encontrávamos na sala grande os velhos baús, neles todo tipo de coisa era guardado, tesouros para quem na humildade era rico e para quem nasceu rico os via como insignificantes. Tudo é uma questão de ótica. Para mim, eram baús de felicidade, a espera do guardador de chaves, único responsável por abri-los a nos desvendar seus mistérios – a esperança; lembranças protegidas que jamais seriam violadas como foi a caixa de Pandora, primeira mulher criada por Zeus.

Corria muito pela estrada que aberta em meio há alguns arbustos, ligava a casa de meus avós à casa de minha tia Maria. Era um vai e vem, um frenesi numa ida e vinda, de cá para lá, tudo numa demonstração de busca por afetividade, destruição da monotonia, um verdadeiro cruzamento de humanidade na certeza de que viver em família nada mais é do que viver em comunidade. Longe disso, seriamos prisioneiros do tempo, onde as grades invisíveis da ansiedade nos proporcionariam visões funestas do futuro.

Era na estrada de terra que fazíamos ligações entre a cosmovisão e a existência após a morte. Nessa mesma estrada vi parentes passarem deitados em redes e carregados por pessoas rumo a última viagem que seus corpos fariam nesse mundo. Muito comum os cortejos fúnebres em um tempo que as redes eram utilizadas como caixões delicados a balançarem os pobres economicamente em lugares esquecidos pelos afortunados: grandes latifundiários, políticos, comerciantes.

A casa ainda deve ser nossa referência nesse planeta. Quando leio Miguel de Cervantes Saavedra – Dom Quixote, muitas vezes considerado um romance moderno, clássico de nossa literatura ocidental, ao lembrar das personagens emblemáticas: Dulcinéia, Rocinante, Benengeli; me deparo com o Sancho Pança e Dom Quixote em diálogos que me fazem lembrar de que a “nossa casa é o mundo”, ela ainda é o nosso porto seguro. Jesus Cristo, por vezes, também demonstrou aos seus discípulos que os mesmos deveriam perseverarem e não terem medo de retornarem à sua casa – o céu!

Assim, toda vez que vejo imagens como a que ilustra inicialmente esse texto, voo às lembranças de minha infância e me vejo saltitante entre o trigo do campo, observando meus avós em sua labuta, a criarem relações interpessoais de afeto, respeito, caráter que moldaram em mim, em minha família a certeza de que vale a pena ter esperança na humanidade e nunca desistir do retorno para casa!

  


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